Nota contra o racismo e a violência contra o processo iniciático das religiões afro-brasileiras

André Gomes Ogunkeye[1]

Calundu – Grupo de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras

 

Alfredo Bosi, em seu já clássico estudo sobre o pensamento colonial presente em A dialética da colonização (2001), analisa o processo de dominação do território brasileiro pelos portugueses a partir de duas perspectivas aqui bastante simplificadas:  a) a colônia é, para o colonizador, um espaço de exploração econômica e, portanto, de enriquecimento; b) a colônia é um espaço de transposição de valores simbólicos/ancestrais/culturais que devem ser adaptados ao novo ambiente. É a segunda perspectiva – cultural/simbólica – que nos interessa e a ela voltaremos em nosso texto-denúncia. Antes é preciso situar a denúncia.

Como é do conhecimento da grande maioria das pessoas, as religiões de matriz africana, especialmente aquelas que representam uma atualização do culto às divindades africanas (nkinsi, orixá ou vodun) em solo brasileiro, têm como marca o processo iniciático e, em algumas delas, esse processo é caracterizado pela raspagem de cabelo. Ao aceitar passar por este processo, a/o noviça/o vai apresentar marcas essenciais da religiosidade, tais como o cabelo raspado, os fios de conta, o uso ou não-uso de determinadas cores. Todo esse processo, realizado nos terreiros das religiões afro-brasileiras, levam, no caso do Candomblé, às cerimônias públicas de saída da Muzenza (nação Angola), Huyin (nação Jêje) ou do Orunkò Yawó (nação Keto), e que consistem na apresentação da/o nova/o componente da família de santo ao público. É preciso destacar que o processo iniciático pode ser acessado por qualquer pessoa que deseje fazer parte daquela comunidade – desde que aceita pela família de santo – e, desse modo, as crianças, desde que assessoradas por suas/seus responsáveis, podem ser iniciadas nessa religião.

Toda essa introdução é para relatar mais uma violência contra um terreiro: em 23 de julho de 2020, em Araçatuba, cidade situada no Noroeste do Estado de São Paulo, uma menina de doze anos – o seu nome por razões óbvias vem sendo preservado – foi retirada pela polícia do terreiro em que estava recolhida para seu processo iniciático, sob a acusação de maus tratos e abuso sexual, e levada junto com sua mãe para depor na Delegacia das Mulheres daquela cidade. Na ocasião, depois do depoimento de ambas e dos exames de corpo de delito realizados na menina, averiguou-se, segundo a imprensa, que ela não tinha quaisquer marcas de violência ou abuso e permanecia tranquila, afirmando que estava recolhida com seu consentimento e com a anuência de seus pais.

Em 28 de julho, um conselheiro tutelar voltou a apresentar denúncia contra mãe da menina, Kate Belintane, afirmando que a raspagem do cabelo podia ser caracterizada como mau-trato. Sem ouvir os pais, o Promotor da Infância e da Juventude entrou com ação contra os responsáveis e a Juíza da Vara da Infância e da Juventude, em caráter liminar, deu a guarda da menina para avó materna que, segundo consta, é evangélica e iniciou o processo.

É interessante pensarmos na inferência realizada pelo promotor de justiça, divulgada pela imprensa televisiva na figura de uma âncora, que, embora a Constituição Federal assegure o direito de crença para todos os cidadãos, incluindo, as crianças e o Ministério Público seja guardião desse direito, “não se pode permitir que, sob o pretexto de liberdade religiosa, se pratique crimes”. Ou seja, é fácil depreender de suas palavras que as religiões de matriz africana, para ele, atuam de maneira criminosa, abusiva e, em última análise, não deveriam ter direitos de cidadania.

Apesar dos avanços que conseguimos ao longo de séculos, bem como das recentes vitórias que o povo de santo conseguiu, a exemplo do direito de resposta à propaganda de ódio da Igreja Universal do Reino de Deus e de seu braço midiático, a TV Record, além da legitimidade jurídica do abate religioso votada no STF em 2019, há, ainda, um longo caminho para a plena cidadania daqueles que abraçam os cultos afro-brasileiros. Isso porque, a despeito de algumas decisões que se baseiam na ideia de laicidade do Estado, o aparato jurídico brasileiro é marcado por uma herança colonial, uma ferida aberta que vê na alteridade das religiões de matriz africana – em sua herança negra – a dimensão do indesejável, do primitivo, do atrasado. Daquilo que não deveria figurar no projeto eurocentrado de nação que ainda é mobilizado por inúmeros atores das mais diversas instituições deste país. Em outras palavras, para estas autoridades, um país civilizado não deveria ter estas idiossincrasias culturais/“folclóricas”.

É esse aparato civilizacional eurocentrado que nega ao povo de santo o seu direito de autodeterminação e passa, como vimos no caso em tela,  por cima da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, para tirar uma adolescente candomblecista de sua mãe, sob qualquer alegação que convenha, única e exclusivamente pelo fato de ela ser candomblecista. É esse mesmo aparato jurídico que permite que advogados, magistrados, procuradores, promotores de justiça ideologicamente alinhados com um projeto de poder racista, julguem a partir desse alinhamento casos em que figurem o interesse de pessoas ligadas às religiões de matriz africana.

No entanto, isso não é novo para nós. É triste e, às vezes desanimador, mas não é novo. Toda a estrutura jurídica brasileira é constituída para ler nossos direitos a partir de uma noção civilizatória que não contempla nossas complexidades. Se na República Velha era a polícia o nosso maior problema, hoje ele está configurado nos três poderes estatais e nas forças paraestatais das milícias, que sustentam um ideal oitocentista de nação e não nos permitem existir plenamente.

Retomamos a noção de colônia como lugar de transposição dos bens simbólicos/culturais que devem ser impostos ao outro, apagando a sua identidade. Bosi afirma que o desejo do colonizador é constituir uma espécie de espelho da metrópole e narra um acontecimento presente no Compêndio narrativo do peregrino da América (1718), de Nuno Marques Pereira (p. 60 -63). Narra o peregrino, segundo Bosi, uma visita que faz a um generoso senhor de engenho que tolerava os batuques, chamados de calundus. Depois de pernoitar na casa do senhor, o padre pergunta ao dono da casa o que era o barulho de batuques da noite anterior e, ao saber que se tratava de expressão religiosa negra, recrimina o dono da casa e condena quaisquer expressões que não sejam católicas naquela terra.

Embora, distantes 300 anos no tempo, a narrativa de Nuno Pereira e o caso de Araçatuba guardam a triste semelhança de representarem formas de demonização e marginalização das religiões de matriz africana. O que muda são apenas os aparatos discursivos: em 1718 nossos ancestrais eram demonizados em nome Deus; em 2020, é em nome da lei que um terreiro é visto como lugar de crime e de abuso.

 

REFERÊNCIAS

BOSI, A. Dialética da colonização. 4.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Mãe perde guarda da filha adolescente após denúncia de maus-tratos em ritual de candomblé. TV TEM. São José do Rio Preto. Veiculado em 08/08/20 https://globoplay.globo.com/v/8761961/programa/?fbclid=IwAR0ki6Dt899RpMkhlgXRYy6hkAR023xPkLexGDKViqzpdqmGZYiroinD9h4

 

[1] Doutor em Teoria Literária. Realiza estágio de pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, da Universidade Estadual da Paraíba (PPGLI-UEPB). Membro do Centro Cultural Oré (CECORÈ) – Egbé Ilê Ifá.

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