Solidariedade à professora Érica Bispo

Um dos eixos de trabalho do Instituto Calundu é a relação que se dá entre entre o Estado brasileiro e as mulheres de terreiro que, mesmo quando não são negras, carregam o estigma da raça por meio da ancestralidade e da história transatlântica das religiões afro-brasileiras. Em termos diretos, com as bênçãos da ancestralidade que nos guia e orienta, o Calundu é antirracista e mulherista.

Diante desse eixo, do nosso posicionamento político, e do bom senso, nos solidarizamos com a professora Érica Bispo, candidata do concurso regido pelo edital FFLCH/FLC nº 024/2024 das USP para vaga de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Para entender o caso acesse este link.

Apesar de menos de 0,5% dos docentes nas universidades brasileiras serem mulheres pretas, é recorrente o número de denúncias contra universidades públicas que não cumprem a contratação de doutoras mulheres negras, seja em desrespeito à lei de cotas no serviço público, seja por outros motivos como, no caso presente, o da não aceitação das/dos demais candidatas/os com o resultado final. O mais esdrúxulo ainda é a concordância da universidade com as/os candidatas/os desclassificadas/os, em detrimento de suas próprias bancas avaliadoras.

Impressiona-nos que mesmo diante de uma disciplina acerca da rica contribuição cultural do continente mais negro do mundo, pessoas brancas que pleiteiam sua docência tenham atitudes eivadas de menosprezo a uma mulher preta, abundantes nas entrelinhas dos argumentos para o cancelamento do concurso. De fato, o que o Conselho Universitário da USP acatou foi a alegação de amizade íntima entre a candidata e integrantes da banca – o que, cabe argumentar, dificilmente se comprova por fotos e comentários publicados em redes sociais que mostram interações em eventos acadêmicos, menos ainda quando não se garante o direito à explanação e à defesa. Entretanto, o recurso também questionava sua produção acadêmica e, em última instância, a capacidade de uma pós-doutora de estar à frente de uma disciplina na qual é uma pesquisadora especializada.

Causa-nos revolta o poder evocado por candidatas/os de questionarem as certificações concedidas à professora Érica Bisco por Instituições de Ensino Superior credenciadas pelo Ministério da Educação brasileiro, num flagrante ato de utilização do poder da branquitude. É bem verdade que sabemos ser o racismo uma estratégia de dominação de pessoas brancas contra não brancas, estratégia essa inerente à matriz estrutural da vida coletiva brasileira e institucional ao Estado. Também sabemos ser o Estado uma ficção (colonial) moderna criada por elites brancas para exercerem seu poder sobre todas as coisas, inclusive sobre os limites que se permite que cheguem as pessoas negras. Ainda assim, é lamentável constatarmos o exercício dessa dominação mesmo com o fim de classificar uma pessoa branca para lecionar conteúdos que versem sobre produção cultural negra.

É com solidariedade e responsabilidade que o Instituto Calundu repudia as ações e as consequências do grupo de candidatas/os e da não observância das regras da USP para que mais essa violência recaia sobre a pessoa, em corpo, mente e espírito, da professora Érica Bispo. 

Ela certamente lida com uma briga maior do que seu caso, com o potencial de lhe causar danos muito além de uma não aprovação em um concurso para o exercício de uma profissão, mas que minam subjetividades negras, sempre questionadas em suas capacidades, em suas possibilidades e em sua excelência. Que os inquices, orixás, voduns e toda a ancestralidade lhe fortaleçam em sua luta.

Estamos ao lado da professora Érica Bispo e apoiamos os passos legais que ela decidir tomar, inclusive se em algum momento ela não quiser mais brigar por isso, pois respeitamos tanto sua força quanto sua humanidade. Uma humanidade colocada a toda prova pela perversidade da branquitude, incapaz de aceitar que possa haver superioridade negra em qualquer que seja a esfera.

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