A nossa reunião ocorrida no dia 06 de novembro de 2024, com apresentação de Célia Raimundo, teve como abordagem o texto “Assentando corpos e costurando memórias: A obra de Rosana Paulino como ferramenta para pensar memórias nos corpos de mulheres negras” de Denise Braz. Nesta, a autora analisa como as criações da artista Rosana Paulino exploram e resgatam a memória das mulheres negras no Brasil. Em seus trabalhos, Paulino utiliza técnicas artísticas como a colagem, a costura e a escultura para simbolizar as experiências, dores e resiliência dessas mulheres, abordando temas como o racismo, a opressão histórica e a identidade negra. O texto de Braz destaca o poder da arte como uma ferramenta de reconstrução de memórias e identidades, enfatizando o papel da obra de Paulino em dar visibilidade a corpos marginalizados e em promover uma reflexão crítica sobre a herança cultural e histórica das mulheres negras no contexto brasileiro.
Durante a reunião, refletimos sobre o processo de humanização das mulheres negras, inspirados pelas preocupações ancestrais que vão além dos padrões convencionais de escolarização e alfabetização. Esse processo é simbolizado como um “assentamento”, que representa resistência e identidade e que desafia os moldes da academia. Esse assentamento torna-se, então, uma maneira de nos comunicarmos academicamente, mantendo a autenticidade de nossas palavras e do saber ancestral.
Percebemos que a iniciação no conhecimento afro-brasileiro carrega segredos fundamentais, aspectos intocáveis que preservam uma essência singular. Esse saber busca dialogar com o que Denise Braz chama de “hieróglifos da carne” — as marcas históricas que carregamos em nossos corpos negros. No entanto, vemos que a academia muitas vezes ignora a profundidade desse saber, favorecendo um conhecimento hegemônico que, embora importante, não pode ser o único legitimado. Sentimos que esse saber ancestral se constrói em diálogo constante com os antepassados, reafirmando raízes que, com frequência, a academia reduz a uma visão colonial.
Guilherme Dantas chamou-nos a atenção a crítica à bibliografia da autora, majoritariamente norte-americana usada para discutir a realidade das mulheres negras latino-americanas. Reconhecemos isso como uma limitação, pois essa prática ignora a especificidade de nossas experiências locais. Lembramos que os corpos negros foram traumatizados não apenas pelo Estado moderno, mas desde a colonização, pela coroa portuguesa e pela escravidão. Percebemos que o Estado, como construção moderna, atua para esconder essa ferida, que segue aberta, mas acreditamos que o “olhar negro” resiste e desafia essa lógica, especialmente nos corpos que vieram dos quilombos e vivem nas favelas, os quais representam resistência. Esses corpos não lutam para ocupar o centro de poder, mas para conquistar dignidade.
Acreditamos que essa busca não está alinhada com a narrativa de sucesso capitalista. Muitos de nós não almejamos ascensão nesses termos, mas sim a construção de uma vida digna. Sabemos que aqueles que alcançam uma posição socialmente mais alta continuam a enfrentar hierarquias raciais, o que mostra que o sucesso individual não dissolve as estruturas de opressão. Temos consciência de que muito do que é produzido na academia tem pouco impacto nas comunidades, pois o conhecimento vivido por autores negros é frequentemente diluído ao ser transposto para o meio acadêmico.
Questionamo-nos sobre a necessidade de definir tudo. Às vezes, sentimos que o sentimento deve vir antes da compreensão; primeiro precisamos sentir, e só depois entender. Notamos que o Estado não esquece o sofrimento das pessoas negras, mas escolhe ignorá-lo para manter sua estrutura. A violência que marca nossos corpos não pertence apenas ao presente; ela carrega a dor de nossos antepassados, que se manifesta em nós. Debatemos com olhar crítico o conceito do sacrifício da mulher negra como “assentamento”, trazido por Denise Braz, que lembra do sofrimento coletivo e da resistência histórica das mulheres negras.
Reconhecemos a diversidade entre essas mulheres, que, mesmo partilhando feridas semelhantes, são únicas. Achamos essencial que suas experiências sejam abordadas tanto de forma individual quanto coletiva. Para além da teoria decolonial universitária, vemos também na perspectiva “contra-colonial” uma alternativa quilombola, que também emerge nas vivências nas favelas e periferias. Embora a favela seja símbolo de resistência, não ignoramos e debatemos o desejo de muitos de seus moradores de sair desse espaço em busca de melhores condições de vida, sem perder a força e a dignidade que definem nossa identidade.
Texto escrito por Iara Silva Bidô, sob a supervisão de Guilherme Dantas Nogueira.
